O designer Rodrigo Ambrosio conquistou reconhecimento internacional com a Cadeira Engenho, produzida em 2015 com 50 quilos de rapadura do único engenho ainda em funcionamento em Alagoas. O alagoano questionava: o que nos alimenta? Essa inquietação em encontrar respostas e, por consequência, explorar novas finalidades matérias-primas inusitadas faz parte da essência do seu trabalho.
Filho de pai português e mãe alagoana, ele teve desde a infância tanto a oportunidade de olhar para o futuro, quanto o contato com saberes ancestrais, principalmente, da cultura nordestina. Ambrosio é formado em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal de Alagoas.
Recentemente, ele encontrou no projeto do Cobogó Mundaú a chance perfeita para explorar sua inquietação, utilizando a casca do sururu, molusco tradicional em Alagoas, para a produção de design. “O processo se mantém importante. Mas o produto se potencializa quando tem a importância de estar no mercado”. Parceira nesse projeto, a Pointer fará a distribuição nacional do produto.
Em entrevista exclusiva à Pointer, com quem compartilha a origem alagoana, o designer Rodrigo Ambrosio fala sobre a carreira, apresenta pistas sobre os seus novos experimentos e destaca a importância de projetos como o Cobogó Mundaú para a sociedade.
POINTER – Seu pai é português e sua mãe alagoana. Como você avalia a influência da sua origem no seu trabalho?
RODRIGO AMBROSIO – Antigamente, os avanços tecnológicos chegavam primeiro na Europa. Meu olhar voltado ao futuro teve uma influência muito grande de Portugal e Espanha, dois países que frequentei. Essa foi uma chance que meus pais me proporcionaram, a ligação com outras culturas.
Já em Alagoas eu mantenho contato muito forte com as culturas da essência, do feito a mão, da parte que envolve um olhar mais voltado à natureza, algo mais rústico. Nesse meio termo é que eu me formo.
POINTER – Ainda é possível manter o mesmo método de produção utilizado ancestralmente, com as mesmas características? Ou a mistura de culturas, como na sua trajetória, impede o purismo no artesanato e no design?
RODRIGO AMBROSIO – Não existe esse purismo, ao menos na minha realidade, por mais que às vezes a gente tente delimitar isso. O hibridismo é bom. Tem artesanato no Brasil e na Europa, mas os materiais mudam, o olhar muda, o refinamento às vezes muda, a forma de enxergar muda. Por isso eu acho interessante ter essas duas experiências na minha formação.
Essa coisa do purismo já foi um dilema na minha vida. Às vezes, na visita a uma comunidade, eu tentava enxergar um purismo que não existia. E que bom que não existe, pois enriquece o trabalho.
POINTER – Então você considera boa a mistura de culturas e conhecimentos?
RODRIGO AMBROSIO – Você conhece Espedito Seleiro (artesão renomado que produz elementos da cultura vaqueira)? Todo mundo reconhece o traço dele. Mas aquilo foi trazido pelos portugueses, que receberam aquilo da arte moura, aqueles arabescos. Portanto, chegou pelos árabes em Portugal e depois aqui, através dos portugueses. Uma arte genuinamente do mestre, mas que vem fragmentada e vai sendo construída.
Eu falava com muita propriedade e defendia o purismo, mas ele não existe. O que existe são vários fragmentos de cultura. O filtro é o importante. No caso, o Espedito Seleiro que é importante, pois filtrou essas inspirações e colocou a sua visão, que era do avô, depois passou para o pai, que fazia as roupas do cangaço, e hoje as sandálias que ele produz têm esse formato, com elementos do passado.
Tudo é formado dessa maneira. Acho que o purismo é mais comercial.
POINTER – Você é formado pela Universidade Federal de Alagoas, na qual também foi professor. Como foi essa sua experiência?
RODRIGO AMBROSIO – Eu me formei no final de 2007 em Arquitetura e Urbanismo. Em 2012, eles criaram o curso de Design e encontraram uma dificuldade muito grande para conseguir professores. Fizeram um concurso e eu me candidatei. Mas me limitava muito com relação ao tempo. Eu já desenvolvia muitas identidades visuais, alguns projetos arquitetônicos e algo inicial ligado a produto. Hoje, o design de produto está mais forte.
Essa experiência foi muito boa. Na época, eu percebi a necessidade dos alunos em questionar o professor. Eu pedia então que cada um trouxesse uma novidade sobre uma inovação ou algo curioso. Assim, você coloca os alunos como protagonistas.
Um fato curioso: eu era o professor mais novo e, por isso, me confundiam muito com aluno. Por duas vezes o segurança me barrou no estacionamento achando que eu era estudante.
Aliás, ensinar é uma tradição familiar. Eu venho de uma família de professores: minha bisavó, minha avó e minha mãe, que foi a primeira professora universitária. Ela deu aula de biologia e depois se tornou auditora.
POINTER – E a paixão pelo design e pela criação? Também é uma tradição de família?
RODRIGO AMBROSIO – Aqui são todos curiosos, muito questionadores. Às vezes, os atritos ocorrem por isso (risos). Nessa quarentena aproveitei para relembrar a infância. Eu tentei identificar o que me agravada na época para eu poder passar uma experiência melhor e mais intensa em determinados momentos para o meu filho, que vai nascer.
Eu sempre tive esse lado da curiosidade, de misturar materiais. Eu gostava de desenhar, pintar. Ao brincar de carrinho, era mais importante fazer a pista do que a competição. Também pintava aquarela. Em Portugal, para eu ficar quieto, tinha uma senhora que me ensinava várias técnicas. Com 9 anos eu era uma criança que pintava, que gostava de fazer exposição. Eu tinha pressa. Hoje em dia não tenho mais.
Por isso, fui procurar um curso que tinha o viés artístico, criativo. Eu pensei em fazer Desenho Industrial. Na época não se chamava Design ainda. Mas, talvez por comodismo, ou para ter uma profissão mais ampla, eu me formei em Arquitetura e Urbanismo.
POINTER – E a criação de produtos, como entrou na sua vida?
RODRIGO AMBROSIO – Eu sou insistente, eu faço da minha maneira até conseguir. O produto foi assim. Alagoas não tem tradição nenhuma com design de produto, até porque não tem oportunidade e demanda. Então fui para São Paulo, para aprender e também para divulgar.
POINTER – Mas o artesanato é muito tradicional em Alagoas. O que falta então por lá?
RODRIGO AMBROSIO – Em Alagoas, o artesanato é muito vasto e rico, é um resumo do nordeste em termos de materiais. Entretanto, se o artesanato não tiver um olhar contemporâneo, a tendência é acabar, pois antigamente ele não era feito de uma maneira comercial.
Veja o caso do índio. Ele fazia o cesto de cipó para um objetivo determinado, que eu chamo de função física. Com o passar do tempo, as facilidades, os materiais modernos e as pessoas que vieram com outros conhecimentos possibilitaram facilidades nesse uso, substituindo esse cesto.
O índio deixou de usar o cesto de cipó porque viu uma maneira mais simples de transportar, mas ele ainda detém o conhecimento ancestral e a produção. E também precisa de renda, já que nós monetizamos tudo.
Agora, o índio tem que entender que ele pode vender o cesto de cipó, mas aquilo tem que ter um olhar contemporâneo, já que o produto vai para a arquitetura de interior, com outro valor. A função do objeto mudou. Você tem aqui uma transposição de espaço, de função.
POINTER – Então os objetos não perdem a utilidade, mas mudam de função?
RODRIGO AMBROSIO – Eu acredito que tudo tem uma função, mas algumas coisas possuem uma função psicológica. Um santo, por exemplo. Ele traz um conforto. A função pode não ser física, mas é psicológica.
O arco e flecha não tem mais a função de matar um animal, porque hoje é mais prático comprar a carne em uma bandeja que já vem do abatedouro. Mas ele ainda mantém a função de guerreiro, as lendas, é o símbolo de Oxóssi, o orixá guerreiro da floresta. As coisas mudam de função.
POINTER – Mas como trazer esses produtos para a nossa realidade, para o mercado consumidor?
RODRIGO AMBROSIO – É preciso estar próximo das pessoas que consomem esses produtos. As empresas conseguem fazer essa ligação entre o produtor e o consumidor através da sua estrutura, aproveitando os pontos de venda e o contato direto com arquitetos, designers de interior e clientes. Essa participação das empresas faz girar a roda da comunidade.
O processo do artesão se mantém importante. Mas o produto se potencializa quando ele chega ao mercado, fechando o ciclo. Isso é algo que retornará, monetizará aquilo para a comunidade. Os profissionais têm a função social de fazer essa ponte, de levar o elemento para uma grande empresa com abrangência.
POINTER – Então as empresas são elos importantes nesse ciclo, em uma economia circular?
RODRIGO AMBROSIO – Isso, porque as empresas estão na ponta e possuem uma estrutura organizacional para fazer esse movimento. E o mercado acaba reconhecendo quem está unindo esses elos da cadeia. É um papel que vai além do comercial, que dá exemplo. Veja o caso da Pointer com o Cobogó Mundaú. A partir desse exemplo, outras empresas podem olhar para as suas comunidades e potencializar outras ações, cada um no seu segmento.
POINTER – Por falar no Cobogó Mundaú, como surgiu o convite para participar do projeto?
RODRIGO AMBROSIO – A minha relação com o Marcelo Rosenbaum começou em 2015. Ele era o curador do clube de colecionadores do MAM – Museu de Arte Moderna de São Paulo e tinha a missão de convidar cinco designers para participar de um projeto. Na ocasião, ele propôs para o grupo doar o cachê e participar de uma imersão em Várzea Queimada, onde ele já trabalhava com o instituto A Gente Transforma (criado por Rosenbaum). Fomos lá e cada um criou um objeto. O tempo passou e fortalecemos a amizade.
Em 2018, eu soube que o Iabs – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Sustentabilidade, em parceria com o instituto A Gente Transforma, queria desenvolver um projeto na comunidade Vergel do Lago, em Alagoas. Eu já conhecia aquela realidade, pois morei em um bairro próximo. Além disso, eu também já estava fazendo algumas experimentações com a concha do sururu. Entrei em contato com o Marcelo e me coloquei à disposição. Em 2019, ele disse que tinha fechado o projeto e assim fui convidado.
POINTER – Como foi o início do trabalho na comunidade Vergel do Lago para a criação do Cobogó Mundaú?
RODRIGO AMBROSIO – Logo após eu firmar a parceria com o Marcelo Rosenbaum, nós começamos a desenvolver um trabalho em Vergel do Lago, região que fica às margens da Lagoa Mundaú, uma das lagoas que dão nome ao estado de Alagoas. Primeiro fizemos um festival para buscar os saberes ancestrais da comunidade e trabalhar também a autoestima dos moradores. Acredite, um dos grandes problemas na comunidade não é só a degradação física, mas a mental. Muitos não acreditam no próprio potencial.
Depois, promovemos oficinas, nas quais identificamos alguns talentos, inclusive com Itamácio dos Santos (artesão de Vergel do Lago que criou o Cobogó Mundaú com Ambrosio e Rosenbaum) participando e dando aula. Assim, criamos uma coleção de produtos com casca de sururu. Tem o cobogó, luminária, vasos, fruteiras, casa de passarinho, tijolinho.
POINTER – Na sua opinião, o Cobogó Mundaú é o produto desse projeto que tem o maior potencial comercial?
RODRIGO AMBROSIO – Certamente, mas como potencial de quantidade. Assim como outro elemento construtivo, a pessoa compra em uma certa quantidade.
Foi esse potencial que eu falei anteriormente, da Pointer chegar na ponta e com muita força. Os arquitetos que especificarem o produto sabem que existe um controle de qualidade, que tem uma história. Assim, eles acreditarão no produto.
POINTER – Quais foram os principais desafios para criar o Cobogó Mundaú?
RODRIGO AMBROSIO – Na universidade, ainda estudante, já trabalhávamos as questões urbanísticas da lagoa e a problemática da concha do sururu. Atualmente, eu estava fazendo alguns testes de resistência da concha. Mas não tinha um objetivo definido ainda. Com esse projeto, o produto foi lançado e teve um ótimo retorno, muito sucesso. E agora será comercializado com a parceria com a Pointer.
POINTER – Vamos falar agora sobre seus outros projetos. A Cadeira Engenho foi um marco na sua carreira?
RODRIGO AMBROSIO – Como elemento, sim. Eu sempre pensei em rapadura como um material em potencial para estruturar um objeto, pois ela é dura, tem resistência. Mas não tinha muita lógica eu desenvolver uma coleção com a rapadura. Em 2015, fui expor meu trabalho na Semana de Design de Milão. Lá, estavam falando muito da Expo Mundial que trabalharia a temática da alimentação.
Veja como são as coisas. Basta imaginar nossos pais. Eles não falavam em carboidrato, fibra, probiótico. Era tudo comida. Na nossa infância mesmo, quanto mais corante melhor, pois a boca ficava azul. Mas a situação mudou com o tempo. Eu vi todo esse movimento e sabia das nossas características locais e da necessidade de falar sobre alimentação.
Depois, fui convidado para participar de uma exposição no Jockey Club, em São Paulo, durante a semana paulistana de design. Foi quando pensei: chegou a hora de fazer, está tudo convergindo para isso. A cadeira é o símbolo do design de mobiliário. Assim surgiu a ideia.
POINTER – Como foi a reação do dono do engenho quando você disse que pretendia fazer uma cadeira de rapadura?
RODRIGO AMBROSIO – Fui fazer uma visita ao local e conheci os proprietários e o processo. Depois falei da ideia. Uma cadeira? Você é doido? (risadas). Mas o dono comprou a ideia e reativou o engenho do avô. Acho que, na verdade, ele não colocou muita fé. Disse: traz a forma e então veremos.
Eu produzi a forma com compensado naval para aguentar a umidade. No primeiro teste, ficamos curiosos para ver. Após duas horas, que é o tempo normal para a rapadura, abrimos a forma e a cadeira quebrou.
Na segunda vez, ele disse: leva para Maceió e depois mande uma foto. Após dois dias, o dono do engenho me ligou. Foi quando eu disse: não vou abrir agora a forma. Deixei lá por um mês, eu não tinha coragem. Abri só para fotografar no estúdio. Ela estava lá, dura, resistente. Embalei novamente e fui para São Paulo. No evento, coloquei uma faca e as pessoas comeram. Quando acabou a exposição, acabou a cadeira.
Eu tive a dimensão do que eu tinha feito quando em vi a foto da cadeira em um jornal de circulação nacional. Nessa página tinham também imagens das peças do Ruy Ohtake, dos Irmãos Campana e uma reedição de uma peça da Lygia Clark. Foi quando pensei: acho que eu fiz um negócio. Inclusive foi um dia dos pais. Eu estava sem falar com o meu pai há muito tempo, desde quando ele se separou da minha mãe. Nesse dia, eu tirei a foto do jornal e mandei para ele. Por coincidência, meu pai estava em São Paulo e fizemos as pazes a partir daí. Foi algo muito forte.
POINTER – Tirando o Cobogó Mundaú, quais são os seus projetos atuais?
RODRIGO AMBROSIO – Trabalho na reedição das peças de Janete Costa (arquiteta pernambucana que destacava as origens da cultura brasileira em seu trabalho. Ela faleceu em 2008 aos 76 anos), pois acredito que falta uma valorização maior. Na última Semana de Design de São Paulo, mostramos três peças e agora vamos ampliar a linha. Continuo também o meu trabalho no ateliê, com pequenas tiragens, peças únicas. Estou, ainda, desenvolvendo uma linha para um hotel e peças em série para algumas fábricas.
POINTER – E sobre os novos materiais? O que esperar?
RODRIGO AMBROSIO – O que eu posso dizer é que me incomoda muito essa quantidade de resíduos que a nossa sociedade de consumo gera. Eu antes não me incomodava em usar um copo descartável. Eu não pensava sobre isso, só pensava em resolver o meu problema, que era tomar dois goles de água. Nós vamos morrer e o copo que usamos 30 segundo estará lá.
A cadeira de rapadura já era uma crítica ao meu próprio trabalho. O que nos alimenta? Mais uma cadeira ou o alimento em si? Esses questionamentos eu continuo fazendo e estão surgindo outros materiais.
Não quero criar expectativa, pois são experimentações. E também para ter o ineditismo que a cadeira feita com rapadura teve. Mas acho que tudo caminha por aí.